Há décadas a viagem se repete. Um senhor magro e de gestos ágeis que não
 denunciam seus 70 anos percorre 130 km de rodovia antes de atravessar o
 portão de ferro que conduz ao interior do complexo. Ele conhece o 
procedimento. Diante da funcionária, tira o cinto, os sapatos e passa 
pelo detector de metais. É conduzido a uma segunda porta, gradeada, que 
abre e fecha a sua passagem. Um lance de escadas e chega à terceira 
porta, onde um segundo funcionário fala ao interfone antes de deixá-lo 
seguir. Só então entra na sala ampla, com uma única mesa e duas cadeiras
 no centro. Aguarda em silêncio a chegada do outro. Magro e grisalho 
como ele, entra acompanhado, com as mãos juntas. É a primeira visita em 
mais de um ano do único amigo que restou a Francisco Costa Rocha – o 
Franrocha, na caligrafia delicada com que assina suas cartas, ou Chico 
Picadinho, no apelido que jamais perdeu entre os colegas do presídio de 
segurança máxima. 
A relação entre esses dois homens há muito deixou de ser profissional. 
Flávio Markman, criminalista paulistano de estatura análoga a seu 1,83 
metro, vinha de uma carreira de 66 defesas de júri sem derrota quando 
conheceu Francisco. Lembra que foi em outra prisão, a Casa de Detenção 
de São Paulo, quando um recém-chegado o procurou no Sagra, Serviço de 
Assistência Gratuita, em que Markman oferecia consultoria jurídica aos 
detentos. Era o mês de agosto de 1966 e Costa Rocha tinha os mesmos 24 
anos que o jovem advogado. Havia cometido um crime inominável, que 
chocou São Paulo. “Doutor”, disse ele, “para médico e advogado não se 
mente: eu acordei, vi uma mulher morta do meu lado e não sei se a 
matei.” 
Nos interrogatórios que se seguiram, parte da memória voltou ao 
“esquartejador da Rua Aurora”, como o assassino ficou conhecido 
inicialmente. Em um depoimento policial que durou dez horas e meia e foi
 acompanhado ao vivo por repórteres do Canal 9, da Rádio Marconi e do 
Jornal da Tarde, contou que conheceu a vítima, a suíça Margareth Suida, 
de 38 anos, em um bar na região central da cidade, por volta das 23h30. 
Beberam cerveja e batida de amendoim. Foram ao apartamento de Costa 
Rocha lá pelas 4h da manhã. E, em algum momento, ele a estrangulou com 
um cinto. “Nessa hora”, diz ele no relato publicado pela imprensa, “eu 
fiquei desesperado, vendo que aquela mulher representava a minha vida. 
Por isso, quis destruir aquele corpo.” Usando facas, tesoura e gilete, 
esquartejou-a com a intenção de esconder as provas do crime. Diante da 
impossibilidade, fugiu para a casa da mãe, Nancy, no Rio de Janeiro, 
onde foi preso. 
Em pouco tempo na relação entre advogado e cliente, foi possível a 
Markman perceber que Chico, que até o crime brutal jamais apresentara 
qualquer sinal de agressividade, tivera uma infância solitária, um pai 
ausente e uma relação conturbada com a mãe. Mas é evidente também que 
sua disposição em defendê-lo não advinha apenas daquela sensibilidade 
aos aspectos passionais que envolvem certos tipos de crime, que tanto 
fascinavam o célebre jurista italiano Enrico Ferri, autor de A 
Imputabilidade Humana e a Negação do Livre Arbítrio (1879). Ou à 
solidariedade para com os decaídos de que falava o mestre do jovem 
advogado na arte dramática do júri, o criminalista paulista Valdir 
Troncoso Peres, morto em 2009. “Era, além de tudo, um grande desafio 
profissional para mim”, conta Markman. 
Quando o grande dia chegou, em 13 de março de 1968, seu talento na 
Primeira Vara Auxiliar – onde ainda hoje está o prédio do 1º Tribunal do
 Júri, na Praça da Sé – não prevaleceu diante das evidências, da 
confissão do réu e da experiência do promotor Vitor Afonso Lopes 
Teixeira. Mas chegou a irritar o adversário: “O advogado de defesa, 
Flávio, procura desviar a atenção dos jurados, fazendo gestos 
exagerados, bebendo água com frequência e batendo os copos”, protestou 
Teixeira, em dado momento, ao juiz. Uma vitória de pirro, ao final, pois
 a acusação não conseguiu emplacar os 33 anos de condenação que pedia 
para Chico. Teve que se contentar com 17 anos e 6 meses. O placar entre 
os jurados: 7 X 1. “Ainda consegui uma absolvição”, orgulha-se Markman. O
 cliente cumpriria 6 anos em uma colônia penal em Bauru e sairia em 
liberdade condicional por bom comportamento em 1974. 
Chico se casou com uma descendente de russos, teve uma filha, se 
separou. Voltou à boemia e à bebida. Até que no dia 18 de outubro de 
1976 conheceu Ângela de Souza Silva num bar da Galeria 24 de maio. E 
tudo se repetiria. 
Chico levou Ângela para seu apartamento, na Av. Rio Branco, onde a matou
 e esquartejou. Em seguida correu para a mãe, no Rio. Foi preso. Dessa 
vez não houve tribunal: o juiz pediu um laudo médico, que declarou o réu
 incapaz, e sentenciou-o a pena comum de prisão – fato à época permitido
 pela legislação. 
Olhando em retrospecto, parece espantoso que até aquele segundo crime 
ninguém tivesse pedido uma avaliação oficial da sanidade de Chico. Mas, 
no primeiro julgamento, como advogado, Flávio avaliou que “declará-lo 
inimputável seria condená-lo a nunca mais sair de um manicômio 
judiciário.” A promotoria, por sua vez, diante das chances claras de 
êxito na corte, tampouco quis um laudo de sanidade. No entanto, Markman 
revela que, pouco antes do julgamento, solicitou a uma amiga, a 
psiquiatra Luiza Jacob, que entrevistasse Chico em caráter privado. A 
médica alertou que em circunstâncias semelhantes ele poderia repetir o 
crime. Quando a possibilidade de fato se concretizou, foi um choque para
 Markman. Mas ele se apoia no dever profissional: “Busquei o melhor para
 meu cliente”. 
Essa ambiguidade está no centro das contradições que cercam o caso do 
preso mais antigo do sistema penitenciário brasileiro. Levado para a 
Casa de Custódia de Taubaté em 1976, nunca recebeu tratamento 
psiquiátrico. Ainda assim, atravessou quatro décadas encarcerado sem que
 tivesse, nas palavras do amigo, “nem uma rusga sequer com ninguém”. 
Leitor voraz de Kafka e Dostoievski – a quem já chamou de “Deus” em uma 
entrevista –, foi escolhido pelos funcionários para organizar a 
biblioteca do presídio, com cerca de 300 volumes. Ele se dedica à 
pintura e escreve com português impecável. “Acho que foram suas cartas 
que me mantiveram ligado a ele por todos estes anos”, conta o único 
visitante regular depois da morte de d. Nancy. Entre as grades, 
sobreviveu às rebeliões do PCC, que surgiu no presídio de Taubaté nos 
anos 90. 
Pena sem fim. Em junho de 1998, Francisco Costa Rocha cumpriu a pena 
máxima permitida pela Constituição brasileira – que não admite “caráter 
perpétuo”. Seu alvará de soltura chegou a ser expedido pelo juiz de 
execuções penais do Estado. Mas a promotoria de Taubaté interveio para 
impedir a libertação. Era o ano em que João Acácio Pereira da Costa, o 
Bandido da Luz Vermelha, ganhou as ruas após 30 anos de prisão e acabou 
morto, meses depois, em uma briga de bar. Havia grande temor na opinião 
pública em relação ao tema. O recurso jurídico para mantê-lo preso foi 
uma interdição civil dizendo que ele era incapaz de tomar decisões 
sozinho. 
Nessa época, escreveu a Markman uma de suas cartas mais angustiadas: 
“Será que agora que vejo as trevas e as luzes da alma humana, tendo me 
decidido pelo caminho da luz, iria novamente trilhar o outro caminho, 
por duas vezes conhecido, que conduz ao abismo??? Não. Francamente, não.
 Pensar o contrário seria negar a evolução da espécie, a evolução 
humana. A vida não caminha para trás. Nada está definitivamente 
estático. A sentença de interdição em regime fechado é extremamente 
preventiva, exacerbada, desnecessária. Por favor, dr. Flávio, queira ver
 o que pode ser feito por mim, pela recuperação do ser humano, pois eu 
me tornei humano”.
Em agosto de 2003, o advogado José Fernando Rocha, curador designado 
para cuidar dos interesses de Chico, recorreu ao Supremo Tribunal 
Federal, mas o habeas-corpus foi negado pelo então ministro Sepúlveda 
Pertence. “Francisco nunca teve atendido seu pedido de indicar um perito
 médico de sua confiança que fosse independente do Estado para que 
pudesse exercitar seu direito de defesa”, alega o curador. “Além do 
mais, não há justificativa para que ele permaneça em um local onde não 
recebe nenhum tratamento.” 
Sem outra instância a recorrer, Fernando Rocha encaminhou, em agosto 
passado, queixa à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da 
Organização dos Estados Americanos (OEA), que ainda não se manifestou a 
respeito. “Manter um homem em pena perpétua pela mera presunção de que 
ele possa vir a cometer um crime é um absurdo que, como legalista, não 
posso admitir”, inconforma-se Flávio Markman. 
A escritora Ilana Casoy, autora de Serial Killers Made in Brasil 
(Ediouro, 2007), que analisa, entre outros, o caso Chico Picadinho, 
também se recusa a entrar no mérito da discussão sobre sanidade ou 
riscos: “O fato é que ele era um preso comum e cumpriu sua pena. Quando a
 gente dobra a lei de acordo com as circunstâncias, é o começo de um 
regime totalitário”. Por diversos meses, a reportagem do Aliás tentou 
entrevistar Francisco Costa Rocha em Taubaté, mas ele não quis falar por
 temer a forma como seria retratado. Em um postal enviado à redação, com
 uma pintura de sua autoria no verso, explicou: “Não posso atendê-lo, 
visto que firmei decisão, faz tempo, de não conceder entrevista à 
imprensa”.
Na sexta-feira, data do aniversário de 70 anos do amigo, Flávio Markman 
telefonou a Taubaté para ter notícias dele. Ninguém parecia se lembrar 
da data. “Fico imaginando o que deve ser passar décadas sozinho em uma 
cela de 4 m por 4 m, comendo o mesmo arroz com feijão e bife intragáveis
 que servem lá. Penso na quantidade de frutas que ele nunca provou, nos 
sabores que jamais vai conhecer.” Naquele último encontro, achou Chico 
particularmente amargurado. Entrou carrancudo e custou a sorrir. 
Entregou a Markman a cópia que recebera da petição feita à OEA, mas 
parecia não ter esperança. Só pouco antes do ex-advogado e amigo sair, 
repetiu o pedido enunciado em tantas correspondências: “O meu desejo, 
doutor, era morrer em liberdade”.
Siga:: https://twitter.com/GhostLit
FaceBook:: http://www.facebook.com/GhostLit 
Comente Por Favor 


Nenhum comentário:
Postar um comentário